O ciclo político iniciado com as eleições de 2015 ficou marcado por uma correlação de forças singular que desafiou a esquerda a assumir a responsabilidade de travar o programa de agressão social imposto ao país pelo governo PSD-CDS enquanto intérprete da vontade das instituições europeias. “Crise” e “austeridade” foram os nomes da estratégia brutal de acumulação e de concentração da riqueza em Portugal e na Europa e foram a essência mesma da integração subalterna das economias periféricas no espaço europeu. O resultado, sabemo-lo bem, foi um empobrecimento em larga escala, com perda de direitos para os e as de baixo e com um crescimento exponencial da extrema-direita em todo o espaço governado pela estratégia da crise e da austeridade.
Os acordos celebrados entre o PS e os partidos de esquerda não só afastaram a direita do governo depois de quatro anos de empobrecimento e austeridade como permitiram recuperar, ainda que com evidentes limites, condições de vida e de mobilização popular. A esquerda, em confronto com o programa eleitoral do PS, conseguiu determinar a recuperação dos rendimentos do trabalho, salários e pensões, operada ao longo dos últimos quatro anos. Foram eliminados num só ano os cortes inconstitucionais aos salários, foram descongeladas todas as pensões e conquistados aumentos extraordinários, foram repostos os feriados retirados, foi retomada a jornada de 35 horas semanais de trabalho na função pública, foi reduzido o IRS desde logo pela eliminação da sobretaxa, foi aumentado o salário mínimo nacional para 600 euros (quase 20% na legislatura), foram abrangidas 800 mil famílias pela tarifa social da energia, foi eliminada a obrigação humilhante de apresentação quinzenal das pessoas desempregadas nos centros de emprego, foi anulado o corte no valor do subsídio de desemprego, reforçou-se a proteção de quem estava submetido a um regime abusivo de recibos verdes, foram dados passos decisivos na erradicação do trabalho forçado. Foi também a esquerda que forçou o lançamento de um programa de regularização do trabalho precário do Estado (PREVPAP), que fez reforçar o combate ao assédio no trabalho, que fez aumentar o valor de referência das prestações sociais de combate à pobreza (RSI, CSI, abono de família, e também alterações na renda apoiada e isenção de IMI), que fez aprovar o Estatuto do Cuidador Informal e as Leis de Bases da Habitação e da Saúde, que garantiu a atribuição gratuita de bombas de insulina a crianças e jovens com diabetes tipo I e que fez parar a execução fiscal de habitações permanentes.
“Crise” e “austeridade” foram os nomes da estratégia brutal de acumulação e de concentração da riqueza em Portugal e na Europa e foram a essência mesma da integração subalterna das economias periféricas no espaço europeu.
Graças à esquerda – e ao Bloco de Esquerda muito em particular – nestes quatro anos existiram avanços muito importantes nos direitos de cidadania: reverteram-se as medidas de menorização e cobrança de taxas às mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez, alargou-se o direito de adoção a todas as famílias, foi ampliado acesso à procriação medicamente assistida e aberto o caminho da gestação de substituição e da despatologização da identidade de género. A condição das pessoas com deficiência e o seu direito a uma vida independente entrou definitivamente na agenda política. A canábis medicinal foi legalizada. O combate contra o racismo, seja nas suas expressões mais primárias e grotescas, seja na sua dimensão estrutural, ganhou força na sociedade e teve eco na lei. A esquerda deu voz e consequência à luta da população imigrante pelo reconhecimento da sua dignidade e isso traduziu-se em alguns passos concretos para uma política de vistos de residência menos arbitrária.
Houve avanços também nas áreas da educação e da saúde. Na primeira, o fim dos exames inúteis no 4.º e 6.º anos, o fim da imposição da única via de cursos vocacionais para alunos com dificuldades escolares a partir dos 12 anos, a vinculação de 7500 professores e professoras, a limitação do financiamento público do ensino privado através de contratos de associação, a gratuitidade dos manuais escolares para os alunos que frequentam até ao 12º ano (escolaridade obrigatória) na rede de ensino público, a redução do número de estudantes por turma e a diminuição do preço das propinas do ensino superior. Na segunda, a redução das taxas moderadoras e o alargamento da isenção do seu pagamento, a reversão da entrega do hospital de Braga ao grupo Mello, a não sujeição do INEM, do SICAD e da DGS a cativações ou a contratação de mais profissionais de saúde para o SNS, embora ainda não todos os que são necessários.
A condição das pessoas com deficiência e o seu direito a uma vida independente entrou definitivamente na agenda política.
Mas, para lá dos avanços registados nas políticas concretas em vista da melhoria da vida das pessoas, os acordos à esquerda constituíram um facto novo na política portuguesa, quebrando o mito de que a não assunção de compromissos de governação seria uma estratégia de desresponsabilização da esquerda relativamente ao exercício do poder. A esquerda mostrou que sabe ser determinante nas escolhas políticas, se tiver força para isso. Desmascarado esse mito, desmascarou-se também o efeito perverso do voto útil. Nestes pontos importantes, a política portuguesa mudou. Os acordos à esquerda e os passos que propiciaram provaram que, no passado, a ausência de entendimentos à esquerda não foi defeito da esquerda, foi mesmo feitio do PS. Durante os últimos quatro anos, em contrapartida, o Bloco foi uma força estável, que nunca cedeu a taticismos e se afirmou como uma garantia de segurança dos direitos das pessoas. É disso que o Bloco presta contas nestas eleições. Afirmando uma certeza: só com mobilização social e mais força da esquerda serão possíveis novos progressos na luta pela dignidade do trabalho, pela igualdade e por justiça na economia em Portugal.
É tanto mais assim quanto é óbvio que o caminho andado nestes quatro anos ficou muito aquém do exigível. O balanço dos acordos não pode ignorar os seus limites e insuficiências, nomeadamente o que falta fazer para as mudanças estruturais de que o país precisa e a assunção de uma estratégia de desenvolvimento baseada na valorização do trabalho, no reforço dos direitos das pessoas e na mobilização de recursos e inteligência para o combate às alterações climáticas.
Os acordos à esquerda e os passos que propiciaram provaram que, no passado, a ausência de entendimentos à esquerda não foi defeito da esquerda, foi mesmo feitio do PS.
O crescimento da economia, precisamente onde a direita antecipava a catástrofe, mostra que a recuperação dos salários e pensões e a reposição de direitos não foi uma frivolidade nem uma teimosia ideológica, mas a escolha certa para responder às exigências de justiça e de competência económica. Em nome dessa justiça, dessa competência e da necessidade de uma perspetiva estratégica para o desenvolvimento do país, o Bloco de Esquerda bateu-se, ao longo destes quatro anos, por uma ambição de mudança concreta muito maior.
Mas, não obstante os avanços propiciados pelos acordos e pela ação política da esquerda, o governo manteve a estratégia de obediência à União Europeia e às exigências de compressão orçamental impostas por Bruxelas. Sempre que se desenhou uma tensão entre a escolha da ampliação do campo dos direitos do trabalho e dos direitos sociais e a busca obsessiva do défice zero para Bruxelas ver, o governo e o PS optaram por esta em detrimento daquela. Esta opção política essencial serviu de justificação para a escassez de investimento no SNS, na escola pública, nos transportes públicos e nos serviços e equipamentos públicos em geral, para a manutenção, no essencial, da proteção das rendas excessivas na energia e para a deliberada recusa de retirar da legislação laboral as expressões mais significativas do ataque que lhe foi movido pelo governo das direitas. O governo do PS criou mesmo novos conflitos com a esquerda ao tentar baixar os descontos patronais para a Segurança Social, o que violaria o acordo com o Bloco, e ao recuar nas suas propostas sobre a recusa da gestão privada dos hospitais públicos e sobre a eliminação das taxas moderadoras nos cuidados de saúde primários.
É face a este balanço – com ganhos inegáveis e com limitações persistentes – que o Bloco de Esquerda afirma que, nestas eleições, é essencial criar uma relação de forças que dê ao Bloco a força para abrir caminho para uma economia para todas as pessoas e uma sociedade que proteja quem mais precisa. Só essa força permitirá a formação de um governo que faça o caminho que ainda está por trilhar, com o relançamento da saúde e da escola públicas, a garantia de relações laborais dignas, o combate ao rentismo e a recuperação da propriedade pública de bens estratégicos na economia e no ambiente. E só essa força dará ao povo a garantia de que, diante da tensão entre estas metas e o cumprimento obediente das regras europeias, serão os direitos das pessoas que prevalecerão.