Pagar a dívida interna: investir na igualdade e coesão

3. Pagar a dívida interna: investir na igualdade e coesão

A. Pagar a dívida interna

3.1. O emprego com direitos no centro da ação política

3.1.1. Valorizar o emprego, combater a perda de direitos

O problema:

Uma governação à esquerda tem a obrigação de colocar o emprego no centro da ação política e de responder às transformações em curso no mundo do trabalho. Isso faz-se com políticas capazes de criar e distribuir o emprego, qualificando o país, reduzindo o horário de trabalho e combatendo as múltiplas formas de desregulação e prolongamento dos horários e do trabalho extraordinário não pago. Faz-se combatendo a precariedade nas suas formas clássicas (como os contratos a termo ou o trabalho temporário) mas também as suas vias que se generalizam (o outsourcing e a uberização). Faz-se promovendo as relações coletivas de trabalho e a contratação coletiva. Faz-se reforçando a efetividade do direito do trabalho, dotando a autoridade inspetiva de poderes e capacidades reais e reequilibrando a legislação laboral, que tem ainda a marca da troika e da austeridade.

Qualquer destas dimensões de intervenções deve encarar os problemas com que Portugal se confronta hoje. Temos mais emprego (a população empregada tinha em 2018 mais 500 mil trabalhadores e trabalhadoras com emprego do que em 2013), mas continuamos a ser um país de precariedade: 22% tem um contrato precário; dois terços da juventude trabalhadora não tem contrato permanente, quase metade dos novos contratos são a prazo, há 70 mil temporários e centenas de milhares que trabalham sem contrato (seja na informalidade absoluta, seja com falsos recibos verdes). Por outro lado, o salário mínimo aumentou, mas continua a ter um valor demasiado baixo face aos custos de vida e os salários médios não recuperaram os valores anteriores à crise.

O salário mínimo aumentou, mas continua a ter um valor demasiado baixo face aos custos de vida e os salários médios não recuperaram os valores anteriores à crise.

A contratação coletiva: um problema de números, mas também de conteúdos

O número de trabalhadores cobertos pelas convenções coletivas publicadas em 2018 atingiu cerca de 900 mil. Trata-se, sem dúvida, de um universo significativamente melhor do que os menos de 250 mil de 2014. O aumento regular do salário mínimo deu um impulso à atualização da contratação coletiva sobretudo em setores em que as remunerações das categorias inferiores da escala salarial coincidiam com o salário mínimo – setores tipicamente com um elevado número de trabalhadores e trabalhadoras – o que concorreu para o aumento da cobertura potencial das convenções coletivas. Por outro lado, a legislação de 2017, facilitando a extensão das convenções coletivas, e o aumento claro das portarias de extensão emitidas em 2017 e 2018 teve certamente impacto na aproximação da cobertura potencial e real. Mas a abrangência das convenções coletivas está longe dos níveis de 2008, altura em que cobria 1,9 milhões de contratos de trabalho.

O problema no plano quantitativo tem implicações várias. A taxa de cobertura das convenções, isto é, a percentagem de trabalhadores potencialmente cobertos pelas convenções publicadas em relação ao universo de trabalhadores melhorou claramente em relação aos dramáticos anos de 2012 e 2013 em que desceu a níveis históricos de cerca de 10%. Atingimos em 2017 perto de 30% mas estamos longe das taxas de 2007 e 2008, respetivamente de 53,4% e 65,5%. Em primeiro lugar, as implicações no plano salarial em termos de desigualdade e persistência de baixos salários não podem deixar de ser consideradas quando 70% nos trabalhadores não são abrangidos por qualquer atualização salarial convencional. Em segundo lugar, que democracia laboral subsiste quando a atualização da contratação coletiva diz respeito apenas a uma minoria da força de trabalho?

O problema é também qualitativo, isto é, de conteúdos. Apesar de haver hoje mais pessoas abrangidas, o facto de as convenções serem negociadas sob a chantagem patronal de fazer caducar unilateralmente o contrato só pode puxar os direitos para baixo. A flexibilidade do tempo de trabalho e bancos de horas são um foco da pressão patronal acrescida na negociação coletiva. O mote está dado ao permitir-se que as convenções tenham disposições inferiores à lei geral, nomeadamente sobre as formas de organizar o trabalho e os seus tempos. O desequilíbrio é hoje a regra nas relações coletivas de trabalho. A lei deveria, contudo, servir exatamente para impedi-lo.

O Bloco propõe:

  • Continuação da recuperação do valor do Salário Mínimo Nacional, a ritmo superior ao conseguido entre 2015 e 2019, partindo de 650 € no público e no privado em janeiro de 2020. Consagrar na lei o subsídio de alimentação para todos os trabalhadores e trabalhadoras do privado (o subsídio de alimentação está apenas nos contratos coletivos ou individuais), com valor mínimo igual ao do setor público (sem prejuízo de contratos coletivos que estabeleçam um valor superior);

  • Definir leques salariais de referência, nos setores público e privado, para combater as desigualdades salariais. As empresas que ultrapassem esse leque serão excluídas de qualquer apoio público e benefício fiscal, bem como excluídas da possibilidade de participar em arrematações e concursos públicos;

  • Relançamento da contratação coletiva e do sistema coletivo de relações laborais, garantindo o fim da caducidade unilateral dos instrumentos de regulação coletiva de trabalho, a reposição do tratamento mais favorável ao trabalhador(para impedir que os contratos coletivos tenham normas piores que as da lei geral) e o alargamento dos mecanismos de arbitragem;

  • Redução do horário de trabalho para as 35 horas (além do benefício para trabalhadores com emprego, permitiria criar mais de 200 mil postos de trabalho) e determinar na lei o dever de desconexão pela empresa, para impedir o prolongamento informal dos horários;

  • Combater a desregulação dos horários e a generalização da laboração contínua, que deve estar limitada pela lei a situações em que seja uma necessidade imperativa;

  • O reforço do combate à precariedade, restringindo a utilização dos contratos a prazo apenas às situações de substituição temporária e de pico ou sazonalidade de atividade e reforçando a Autoridade para as Condições de Trabalho, com a contratação de mais meios (não apenas na inspeção, mas também como técnicos superiores) e dando-lhe mais poderes (designadamente conferindo título executivo a algumas das suas decisões);

  • Uma nova lei de combate ao trabalho temporário e ao falso outsourcing, designadamente através de: i) limitação dos fundamentos e da duração do trabalho temporário – máximo de seis meses; ii) obrigação de vinculação à empresa utilizadora ao fim de seis meses; iii) aplicação das regras e convenções coletivas da empresa aos trabalhadores e às trabalhadoras em outsourcing; iv) possibilidade de quem está em outsourcing optar por ser representado pelas organizações da empresa utilizadora (nomeadamente poderem eleger e ser eleitos para as Comissões de Trabalhadores);

  • Inverter o desequilíbrio inscrito na legislação laboral, designadamente: i) devolver os três dias de férias retirados pela direita (voltar aos 25 dias, sem critério de assiduidade); ii) repor os valores do trabalho suplementar (cortados para metade pela direita) e o descanso compensatório em caso de trabalho suplementar; iii) impossibilitar que o contrato individual afaste os critérios definidos na lei relativos à mobilidade funcional e geográfica (que por vezes funcionam mesmo como mecanismos de assédio que visam forçar o trabalhador ou a trabalhadora a despedir-se); iv) retomar o valor das compensações e as regras anteriores à intervenção da troika, instituindo o princípio geral de um mês/por cada ano de trabalho prestado (neste momento, está em 12 dias); v) eliminar o despedimento por inadaptação, vi) retomar os prazos de pré-aviso de greve, que foram alargados injustificadamente;

  • Garantir mais direitos a quem trabalha por turnos, nomeadamente através de: i) consagração legal da obrigatoriedade de subsídio por turnos; ii) maior acompanhamento médico; iii) definição de pausas e tempos de descanso e fins de semana; iv) participação dos trabalhadores e das trabalhadoras na definição das escalas de turnos; v) redução dos tempos de trabalho; vi) majoração dos dias de férias; vii) direito à reforma antecipada em proporção do tempo que se trabalhou por turnos;

  • Reconhecer e enquadrar o trabalho doméstico assalariado e o trabalho profissional associado aos cuidados (apoio domiciliário, amas, ajudantes familiares), pondo fim à desigualdade que a lei estabelece e garantindo a mesma proteção social de que gozam todos os trabalhadores por conta de outrem;

  • Alargar os direitos de parentalidade (licença inicial do pai, aumento da licença partilhada, redução de horário nos primeiros 3 anos de vida da criança), e dos direitos de pais e mães de filhos com deficiência, doença crónica ou oncológica, bem como dos direitos em situação de doença (designadamente reforçando o valor da licença para doentes crónicos, graves ou oncológicos) e para acompanhamento de pessoa dependente (licenças para os e as cuidadoras informais).

Queremos alargar os direitos de parentalidade, como a licença inicial do pai, aumento da licença partilhada, redução de horário nos primeiros 3 anos de vida da criança, e os direitos de pais e mães de filhos com deficiência, doença crónica ou oncológica.
  • Iniciar o caminho para que as empresas que detém plataformas digitais’ assumam a responsabilidade ou partilhem responsabilidades e encargos no plano laboral, da proteção social e da segurança no trabalho, explorando o contributo de mudanças legislativas ou jurisprudência doutros países neste sentido e promovendo um debate alargado em Portugal designadamente quanto à responsabilização das empresas ligadas à atividade de transporte individual de passageiros remunerado (TVDE) – Uber, Cabify e similares – e ligadas à atividade de distribuição de refeições no domicílio – Uber Eats e Glovo.

  • Sim, é possível reduzir o horário para as 35 horas no privado

  • A experiência portuguesa e internacional relativa à redução do horário de trabalho faculta-nos conhecimento suficiente para perceber que esta é uma medida possível e dá-nos indicações sobre como conduzir um processo deste tipo. Se tomássemos como referência a experiência francesa de 1998, a aplicação das 35 horas no setor privado em Portugal poderia criar cerca de 230 mil postos de trabalho. É sensato e tem de ser feito: mais emprego e mais tempo para viver.

    Em Portugal, a redução para as 40 horas, em 1996, permitiu a criação de 5% de emprego líquido no primeiro ano e 3% no segundo. Em França, a aplicação das leis Aubry (a primeira de 1998 e a segunda de 2000) que reduziram o horário de trabalho paras as 35 horas, foi objeto, em 2014, de uma “Comissão de Inquérito sobre o impacto societal, social, económico e financeiro da redução progressiva do tempo de trabalho”.

  • “A redução do tempo de trabalho decidida pela lei de 1998 contribui para que a economia francesa criasse mais empregos do que teria criado sem esta lei. O número de 350 mil é o mais comummente admitido”, do total de dois milhões de empregos criados entre 1997-2001;
  • “Esta redução não coincidiu com uma degradação da competitividade do nosso país – nomeadamente porque ela foi acompanhada de uma aceleração dos ganhos de produtividade. A França permanece assim atrativa e localiza-se regularmente no trio dos países com mais investimento direto estrangeiro”;
  • “A redução do tempo de trabalho, comparada com outras políticas públicas postas em marcha para estimular o emprego, nomeadamente aquelas que assentam na redução das quotizações sociais sem condições, aparece como menos dispendiosa para as finanças públicas, tendo em conta o número de empregos que permitiu criar”;
  • A redução para as 35 horas “permitiu o relançamento e o dinamismo do diálogo social”;
  • “A uma melhoria da articulação entre o tempo passado no trabalho e o tempo consagrado a atividades pessoais, familiares e associativas”.
  • O mesmo relatório identifica também os problemas da condução desse processo naquele país, com um quarto dos ativos a relatarem uma degradação das condições de trabalho pela intensificação dos ritmos e com empresas que reduziram o tempo de trabalho recorrendo à compressão de tempos de pausas acordados ou da transição entre turnos, intensificando o trabalho e aumentando o sofrimento profissional. Estes alertas devem, pois, ser incorporados na legislação que, em Portugal, venha a ser feita para reduzir o horário de trabalho.

Vitórias concretas contra a uberização do trabalho

O ‘modelo de negócios’ baseado nas plataformas como a Uber, a Cabify, a Uber Eats ou a Glovo – poderosas empresas multinacionais – procura escapar a quaisquer responsabilidades diretas no plano contratual, quer quanto a contratos de trabalho, quer quanto a contratos de prestação de serviços, escapando também a quaisquer responsabilidades no campo da segurança social e da segurança e saúde no trabalho.

Mas contra esta forma de deslaboralização das relações laborais tem havido vitórias importantes. Os e as taxistas de Barcelona conseguiram uma primeira vitória contra a uberização como processo de desregulação económica e dos direitos laborais e sociais na Europa quando levaram o seu protesto contra a competição desleal introduzida pela Uber até ao Tribunal de Justiça Europeu em 2014. Em dezembro de 2017, o Tribunal decidiu, rejeitando o argumento da Uber – que alegava ser apenas uma empresa de tecnologia de informação, uma plataforma digital de intermediação entre condutores e condutoras e passageiros e passageiras – e determinou que a Uber deveria ser classificada como uma empresa de serviços de transporte e teria de ser regulada como tal, afastando por isso a regulação da Uber do alcance das diretivas europeias dos serviços e do comércio eletrónico, à luz das quais a atividade da Uber não teria sido considerada competição desleal. Este primeiro passo ao nível da UE compreende uma orientação muito importante enquadrando a regulação da atividade das plataformas nas obrigações legais no plano laboral e social de cada país da UE. Ora, neste âmbito, uma das questões centrais é a da relação de emprego entre os operadores Uber (e similares) e os condutores e as condutoras que usam a plataforma.

Em Barcelona, Londres e Nova Iorque várias instâncias de fiscalização e regulação decidiram classificar os condutores da Uber como funcionários da plataforma, determinando que havia uma relação de trabalho, dando várias razões para isso: a de que a empresa fornece smartphones para que possam realizar sua atividade profissional; oferece-lhes um "sistema de incentivos" baseado na produtividade; e garante-lhes que intervirá caso tenham problemas com a polícia e tribunais. Em Londres, em 2016, um tribunal de trabalho decidiu que quem trabalha para a Uber não é trabalhador ou trabalhadora independente e que portanto é abrangido pelos direitos fundamentais incluindo ao salário mínimo e a férias pagas. O tribunal explicou a decisão: “a noção de que a Uber em Londres é um mosaico de 30 mil pequenas empresas ligadas a uma plataforma comum é ridícula. Os condutores não negoceiam, nem têm o poder de negociar com os passageiros. Oferecem-se e aceitam-se viagens nos termos estritamente decididos pela Uber.” Em Nova Iorque, em 2018, as autoridades municipais introduziram uma remuneração/hora mínima de cerca de 15 euros (representando um aumento de 4 euros em relação à média horária praticada), encerrando um contencioso de dois anos, para garantir o direito a um salário decente.

Em Londres, em 2016, um tribunal de trabalho decidiu que quem trabalha para a Uber não é trabalhador ou trabalhadora independente e que portanto é abrangido pelos direitos fundamentais incluindo ao salário mínimo e a férias pagas.

3.1.2. Valorizar os trabalhadores e as trabalhadoras da Administração Pública

O problema:

Apesar do descongelamento de carreiras e do aumento do salário de entrada na carreira de assistente operacional para 635 euros, quem trabalha na função pública mantém níveis salariais líquidos inferiores aos de 2011. A par dessa desvalorização, a falta de trabalhadores e de trabalhadoras em muitos setores da Administração Pública sobrecarrega os e as restantes e pressiona a qualidade dos serviços públicos.

Para cumprir direitos fundamentais como a proteção social, a saúde e a educação são necessários serviços públicos de qualidade com trabalhadores valorizados e qualificados.

Para cumprir direitos fundamentais como a proteção social, a saúde e a educação são necessários serviços públicos de qualidade com trabalhadores valorizados e qualificados.

Responder à agressão da troika e da direita

Os trabalhadores e as trabalhadoras da função pública foram muito punidos pela austeridade. Entre 2010 e 2015 o seu ganho médio líquido mensal real diminuiu 18,2%; ganho médio real por hora reduziu-se em 28,4%. A atual legislatura respondeu a estas pessoas revertendo as medidas mais violentas do governo da direita: requalificação para despedir; horas extraordinárias mais baratas do que no privado; cortes salariais diretos; congelamento de carreiras, sobretaxa do IRS, aumento do horário de trabalho para as 40 horas.

O Bloco propõe:

  • Revisão da tabela remuneratória da Administração Pública para recuperar proporcionalidade e justiça entre carreiras;

  • Aumento salarial anual mínimo ajustado à inflação e aumentos reais no quadro da valorização da Administração e serviços públicos e nas condições enunciadas anteriormente;

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